Um caminho para repatriar dinheiro
A razão de ser da proposta é de ordem econômica, como, aliás, também o foi a criminalização original da manutenção de contas não declaradas no exterior (art. 22, parágrafo único, Lei 7.492/1986). Deve-se recordar que a origem da citada norma penal se deu em um Brasil dos anos 1980, onde se verificava uma sensível crise cambial e financeira, o que gerou uma forma de controle penal. Tanto isso parece ser verdade, que o crime não é o de se ter dinheiro no exterior, mas o simples não se comunicar o dinheiro que lá houver, em uma espécie de administrativização do Direito Penal. O que o Estado-Fisco intenta, no entanto, é o simples controle existencial de valores acima de determinado padrão, nada mais. Hoje, por exemplo, portarias do Banco Central estipulam que depósitos a partir de cem mil dólares americanos no exterior devem ser comunicados anualmente. Assim, se é o próprio Estado-Fisco, através do Banco Central, quem determina o patamar dos valores que a ele interessa a comunicação, parece bastante plausível que ele também possa descriminalizar os depósitos se estes forem comunicados e se for paga determinada multa, a qual, diga-se, mostra-se bastante substancial. A situação não é de todo nova no âmbito do Direito Penal Econômico e Tributário. Já se conhece, no Brasil, desde a Lei n-? 9.249/1995, a possibilidade de extinção de punibilidade nos crimes tributários quando o agente promove o pagamento do tributo, inclusive acessórios, antes da denúncia. O que agora se propõe é que a regularização de valores depositados no exterior, com respectivo pagamento de multas, implique extinta a eventual punibilidade penal pelo crime de evasão de divisas. Mesmo essa pena, na atual conjuntura, poderia ser questionada tendo-se em vista o interesse do Estado. Mas o projeto procura responder isso de forma mais clara. É certo que virão críticas, principalmente daqueles que enxergarão na proposta uma forma de legitimação de dinheiros sujos. Tenha-se em conta, no entanto, que o projeto não pretende proteger a origem ilícita de nenhuma espécie, estando afastada a possibilidade de regularização de valores oriundos de lavagem de dinheiro ou outro crime. Portanto, sob esse aspecto, não seria de se sustentar uma objeção, apesar de se antever alguma resistência de alguns operadores do Direito, o que pode ser prejudicial pois, talvez, gere certa insegurança jurídica. De qualquer forma, a proposta acompanha uma tendência internacional e, mais do que tudo, ao pretender uma regularização das condições antes havidas, faz com que tais valores se adequem às regras de compliance empresarial a que muitas das pessoas que eventualmente detenham esses depósitos tenham que seguir. O Direito Penal contemporâneo, que nas palavras de alguns autores hoje se mostra como um Direito Penal da era do compliance, deve acompanhar essas considerações, sob pena de se manter atrelado a um pensamento por demais arcaico. O alegado maior programa de compliance fiscal do país tem, pois, diversas implicações penais, e estas devem ser sentidas caso a caso, recordando que o novo quadro legal que se define, cada vez mais requer, também, uma visão de criminal compliance, e, aqui, o novo desafio.
*Renato de Mello Jorge Silveira é vice-diretor da Faculdade de Direito da USP